Da aldeia para a cidade, da cidade para a aldeia: dualidade dos tempos modernos - L. Duarte
19-11-2013 21:00Nos anos cinquenta e sessenta do século passado, passei grande parte das minhas férias em Aldeia Viçosa, terra onde nasci e de que gosto muito.
Nessa altura era emocionante viajar da cidade para a aldeia, porque pairava no ar um certo sentimento de aventura. As estradas que ligavam a Guarda a Aldeia Viçosa, não eram tão boas como as da atualidade e as curvas e contra curvas sinuosas, faziam com que me sentisse muito insegura, lá, no assento detrás do automóvel que o meu pai conduzia com cuidados redobrados.
À chegada, a recompensa era enorme. Ia reencontrar uma série de amigas e amigos com quem brincava nas ruas e passeava ao fim da tarde, trocando confidências próprias da juventude.
Havia sempre gente e animais a circular nas ruas, e a azáfama era intensa nas épocas de cultivo ou regadio dos campos, ou na altura da apanha da azeitona, do milho e das batatas.
Nessa época a aldeia tinha mais habitantes, do que hoje em dia.
Tinha loja de comércio onde se compravam alimentos, chitas e alfaias, padaria com pão centeio acabado de fazer, posto de correio e cabine de telefone público, quatro ou cinco tabernas onde os homens bebericavam copos de três, costureiras e alfaiate, latoeiro, carpinteiro, sapateiro, ferreiro, lavadeiras que lavavam cobertores de papa no rio e na ribeira do pocinho, burros e mulas, cães e gatos, galos e galinhas nas ruas, porcos, cabras, ovelhas e vacas nas pastagens, crianças a jogar à bola no campo de futebol, lareiras crepitando com um cheiro intenso a caruma e a giestas e, sobretudo, muitas vozes saindo das casas, de mães que falavam ou admoestavam os seus filhos truculentos.
Em suma, sentia-se o palpitar da vida nas suas ruas.
Tudo isto se foi desvanecendo com o rodar dos anos e em pleno século vinte e um, esta narrativa sobre um passado, não tão longínquo, quase parece invenção.
Com a partida para outras terras, poucos habitantes ficaram - os resistentes - e isso, é perfeitamente compreensível: as pessoas precisavam de sobreviver e partiram em busca de uma vida melhor.
Volvidos cinquenta e tal anos, a aldeia modificou-se radicalmente.
Muita água correu no rio Mondego entretanto, e outras vidas e outras vivências se foram construindo. Hoje em dia, já não se vêm crianças a brincar nas ruas, a jogar à macaca, ou a lançar o pião no pátio da escola primária, ou homens com enxada ao ombro e burro pela mão a regressar dos campos...
Vemos casas novas ou recuperadas e alguns habitantes com automóveis à porta que saem deles, com sacos de plástico do supermercado mais próximo onde tudo se compra, sem se cruzarem com a vizinha da casa ao lado, que entretanto emigrou.
Confesso que tenho um sonho recorrente.
O de ver Aldeia Viçosa remoçada, com residentes com empregos na própria aldeia ou nas proximidades e com muitas crianças a brincar no adro, ou a trepar pelas suas árvores e ruas inclinadas.
Acreditem que não se trata de saudosismo ou vontade de querer recriar um lugar idílico onde, supostamente, todos seriamos felizes.
É apenas uma certa nostalgia doutros tempos, pois reconheço que o progresso trouxe coisas boas - que aqui não enuncio por serem sobejamente conhecidas - obviamente.
Só que o preço que estamos a pagar pela crescente desertificação do interior de Portugal é demasiado elevado.
Será necessário repensarmos o nosso país, sob pena de um dia destes, existirem cada vez mais aldeias no interior, sem habitante algum - onde o único som que ecoa nos caminhos, seja o dos nossos próprios passos, se por acaso ali passarmos.
Lucinda Coutinho Duarte
Natural de Aldeia Viçosa
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